Da Invasão à Evasão: Como o conflito Russo-Ucraniano se relaciona com a Evasão Fiscal

O dia 24 de fevereiro de 2022 marcou o início de um capítulo negro na história do continente Europeu, com a incursão da Rússia em território Ucraniano a desenhar novos contornos no conflito descerrado no seguimento da anexação unilateral da Península da Crimeia em 2014. As ações do primeiro motivaram uma forte oposição generalizada pela Comunidade Internacional, que se tem mobilizado e cooperado intensamente no sentido de apoiar a Ucrânia e repreender o agressor. Se, por um lado, foram estabelecidos vários apoios dirigidos à Ucrânia, a Comunidade procura desmantelar o esforço militar russo através da fixação de um vasto leque de sanções. Entre estas destacam-se, pelo simbolismo e mediatismo que têm conquistado, as dirigidas aos oligarcas russos, indivíduos que ocupam posições de poder na sociedade russa com ligações profundas ao regime atual, controlando alguns dos principais setores económicos e agências governamentais do país. Relativamente a estes indivíduos, as sanções aprovadas consistem em apreensões de património (imóveis, automóveis, iates e outros bens de luxo), congelamento de contas bancárias e outros títulos financeiros e a proibição de entrar e fazer negócios em cada vez mais jurisdições.

Vários analistas especializados nestas temáticas consideram que cerca de 10% do PIB mundial se localiza em offshores, sendo que se estima que esta percentagem se situe nos 60% para a Rússia, o que torna este caso um outlier no que toca à proporção de riqueza guardada fora do país. De facto, em 2018, Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman estimaram que existia mais riqueza financeira detida além-fronteiras pelas classes mais altas do que a totalidade da riqueza detida pela população em geral dentro do país. Sendo assim, numa primeira análise denota-se que a Rússia parece estar particularmente exposta a este tipo de medidas, pretendendo-se explorar esta fragilidade do regime.

Contudo, a eficácia destas medidas tem sido posta em causa, até porque as mesmas não foram propriamente uma novidade, tendo já sido aplicadas no passado, embora menos intensamente. Os serviços secretos de vários países sabem que o regime russo alertou os seus “parceiros”, meses antes da invasão, para se precaverem contra a possibilidade de novas sanções vindas do Ocidente. Mesmo para os que não acataram as orientações do Kremlin, atualmente existem vários mecanismos que permitem aos indivíduos mais abastados obscurecer a sua riqueza, particularmente a conservada em ativos financeiros (ao invés dos ativos físicos mencionados acima), que é como se concentra a maior parte do capital acumulado pelos mais ricos.

De facto, existe toda uma indústria cuja finalidade consiste em ocultar os beneficiários efetivos destes títulos. Os paraísos fiscais são países que, conforme descrito por Gabriel Zucman no seu livro “The Hidden Wealth of Nations: The Scourge of Tax Havens”, comercializam a sua soberania oferecendo regimes fiscais altamente favoráveis de forma a incentivar pessoas coletivas e individuais a transferir dissimuladamente os seus lucros e riqueza para as suas jurisdições, obtendo receita fiscal que, de outra forma, nunca obteriam, através de uma concorrência desleal com os restantes Estados. Esta indústria teve origem no continente europeu e ainda marca presença no seio da própria UE (veja-se o caso do Luxemburgo e os escândalos OpenLux/LuxLeaks).

O targeting destes indivíduos/grupos, muito atrativo comparado com medidas que empobrecem a população como um todo (o que, historicamente, é problemático), encontra-se, assim, altamente prejudicado pela nossa falta de conhecimento relativamente ao seu verdadeiro património financeiro. Neste contexto, Zucman avança que a sua proposta de consolidação, expansão e articulação dos registos nacionais com vista à criação de um registo mundial de bens financeiros permitiria desvendar as verdadeiras fortunas dos visados e atacar a riqueza offshore (e as classes mais ricas, que mais foram favorecidas pelo regime) de forma mais sistemática, favorecendo a eficácia das sanções. Organizações como o International Centre for Tax and Development (ICTD) e a Independent Commission for the Reform of International Corporate Taxation (ICRICT) têm aproveitado o mote para pressionar os decision-makers a promoverem avanços nesta matéria.

As respostas às recentes crises têm requerido grandes esforços pelas finanças dos Estados, muitos dos quais já se encontravam fortemente endividados. Nos casos mais graves, o recurso a organizações internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial, pressupõe a imposição de medidas de austeridade regressivas (como aumentos dos impostos sobre alimentos e combustíveis e cortes na despesa pública), sendo que muitos dos recipientes dos empréstimos são países subdesenvolvidos que enfrentam graves crises humanitárias, ao mesmo tempo que é prevalente a transferência de capitais para o exterior para os ocultar.

Inevitavelmente, estes terão de assegurar receita, sendo que a aposta na coleta originária nas classes mais pobres (que dependem dos rendimentos do trabalho e têm menor capacidade para evadir) poderá não ser sustentável, pois estas faixas da população poderão não conseguir suportar (ou mesmo tolerar) cargas fiscais superiores no decorrer de períodos de recessões económicas, inflação e desemprego. Mesmo que não se concorde com as medidas propostas até ao momento (como o mecanismo CCCTB da Comissão Europeia, para a alocação dos lucros das multinacionais), é evidente que necessitamos de atingir um novo paradigma fiscal com ênfase na transparência e equidade.