Tributação de criptomoedas
Desde o seu aparecimento, em 2009, os criptoativos têm suscitado a curiosidade de vários investidores, mas subsistem inúmeras dúvidas sobre estes ativos, muito por causa da sua falta de regulação, incluindo em matéria fiscal.
Criptoativos são ativos financeiros digitais baseados em tecnologias de registo descentralizado (DLT, distributed ledger technology), isto é, em que os dados e as transações são registados numa rede de servidores mantida coletivamente, e partilhados de forma sincronizada e descentralizada entre os participantes da rede, dispensando assim o uso de intermediários no seu processamento. Estes ativos dividem-se geralmente em três categorias: payment tokens (ou criptomoedas, como as bitcoins), usadas como unidade de conta e meio de pagamento, utility tokens, que representam direitos a receber bens ou serviços futuros, e security tokens, que representam direito a dinheiro ou outro ativo financeiro real.
Com efeito, as caraterísticas que fazem destes ativos únicos – como a ausência de controlo centralizado, o (pseudo)anonimato, a difícil avaliação, e o caráter híbrido entre o ativo intangível e o instrumento financeiro – são também as responsáveis pelos desafios que se colocam aos legisladores de várias áreas, incluindo o legislador tributário, quer pela dificuldade em definir um tratamento fiscal que cubra todas as suas diferentes facetas, quer pela dificuldade em fixar tal tratamento, tendo em conta as constantes e rápidas alterações na sua natureza.
Desde logo, em termos contabilísticos, não tendo sido ainda emitido um entendimento internacional, os criptoativos têm tido diferentes tratamentos de acordo com o seu tipo. As criptomoedas têm vindo a ser tratadas maioritariamente como ativos intangíveis, de acordo com a IFRS IAS 38 (ou como inventários, de acordo com a IAS 2, quando detidas para venda no curso normal da atividade), os utility tokens como pré-pagamentos de bens e serviços, sujeito à IFRS 15, e os security tokens como ativos financeiros nos termos da IFRS 9.
Sem prejuízo, preocupações como o branqueamento de capitais, financiamento do terrorismo, e evasão fiscal, levaram os líderes do G20 a exigir a discussão sobre a abordagem fiscal dos criptoativos, da qual resultou a publicação, em outubro de 2020, pela OCDE, do relatório “Taxing Virtual Currencies”, que aborda os gaps existentes a nível legislativo para os principais tipos de impostos e faz algumas recomendações aos países que queiram reforçar a sua política fiscal nesta matéria. Entre as recomendações da OCDE destacava-se já a necessidade de providenciar guias sobre o tratamento fiscal das moedas virtuais que fossem claros, atualizados regularmente e consistentes com o tratamento de outros ativos. Em Portugal, e contrariamente à tendência europeia, tal ainda não aconteceu.
De facto, em Portugal conhecem-se apenas três Informações Vinculativas da Autoridade Tributária publicadas sobre o assunto, que esclareceram que, em sede de IRS, os rendimentos associados a criptomoedas não são tributados, por não se incluírem nem na definição de mais-valias nem na de rendimentos de capital para efeitos fiscais, a não ser que, pelo seu caráter de habitualidade, se considerem obtidos no contexto de uma atividade profissional ou empresarial. Em sede do IVA, a Autoridade Tributária também se pronunciou, seguindo o entendimento do TJUE no caso Hedqvist (C-264/14) e considerando que, sendo as bitcoins comparáveis a moeda fiduciária, a sua simples transferência não é sujeita a IVA, e as operações que consistam no câmbio por moeda fiduciária, ou vice-versa, efetuadas a título oneroso, embora sejam prestações de serviços para efeitos do IVA, são isentas deste imposto ao abrigo do artigo 9.º, alínea 27), subalínea d) do Código do IVA (artigo 135(1)(e) da Diretiva IVA).
Mas o que podemos esperar em termos fiscais, tendo em conta os desenvolvimentos noutros países?
Ao nível do imposto sobre o rendimento, muito poucos países têm considerado as criptmoedas como moeda fiduciária, por terem aceitação limitada, ausência de valor intrínseco (não estão ligadas, na maior parte dos casos, ao valor de nenhuma commodity ou moeda estrangeira), por serem voláteis em termos de poder de compra, não serem emitidas por uma autoridade pública nem serem moeda de curso legal em pelo menos uma jurisdição (situação recentemente alterada com a declaração do curso legal da bitcoin em El Salvador), e serem altamente desreguladas. Como tal, a maior parte dos países têm escolhido tratá-las como propriedade para efeitos fiscais.
Neste contexto, uns países consideram existir um evento tributável logo aquando da criação/recebimento da moeda (por vezes, dependendo se ocorre ou não no contexto de uma atividade ou com caráter de habitualidade); outros apenas quando esta é subsequentemente alienada, tratando-o como mais-valias e tributando-as nos termos gerais com um custo base de zero (com algumas exceções, quando trocadas por outra criptomoeda).
Como tal, no caso da troca por bens ou serviços, as transações de criptomoeda são tratadas como transações recíprocas – o que pode ser problemático, dadas as dificuldades de mensuração e o objetivo de as usar como meio de pagamento quando a maior parte dos consumidores não estão equipados com meios para calcular os seus ganhos ou perdas em cada uma das suas transações do quotidiano.
Relativamente a doações e perdas, a regulação é mais escassa, existindo casos em que a doação é tratada como uma alienação, seguindo as regras das mais-valias, e outros em que se considera que não existe qualquer evento tributável. Do mesmo modo, as perdas/roubos de criptomoedas são por vezes consideradas como menos-valias e, noutros casos, desconsideradas.
Em contraste, no caso do IVA, a maior parte dos países têm tratado as criptomoedas como semelhantes à moeda fiduciária, na sequência da decisão do TJUE no já referido caso Hedqvist. Aliás, na sequência desta decisão, o Comité do IVA da Comissão Europeia adotou a mesma abordagem, definindo o enquadramento de IVA de várias atividades relacionadas com as moedas virtuais, que tem sido adotado pela maioria dos países da UE:
• Troca de moedas virtuais por outras moedas (virtuais ou fiduciárias): não sujeita a IVA.
• Uso de moeda virtual para aquisição de bens ou serviços: não sujeito a IVA (ainda que o fornecimento dos bens ou serviços dados em troca o seja, se aplicável).
• Criação/recebimento de novas moedas (mining): geralmente não sujeito a IVA.
• Serviços relacionados com a troca de moedas virtuais: geralmente isentos de IVA, com algumas exceções (nomeadamente no caso dos serviços relacionados com intermediação fornecidos por plataformas de câmbio).
Por fim, em matéria de impostos sobre a propriedade (impostos sucessórios, sobre donativos, riqueza ou transações), embora pareça provável que as operações relacionadas com moedas virtuais venham a ser tributadas por estas serem geralmente tratadas como propriedade para efeitos fiscais (exceto para efeitos do IVA), existem ainda poucas diretrizes sobre a sua aplicação.
Assim, perante esta incerteza, diversidade de enquadramentos e crescente adoção de guidelines nos restantes países europeus, é com expetativa que se aguarda qual será a posição de Portugal relativamente à regulação destas matérias num futuro próximo, sem perder de vista a oportunidade que se coloca ao legislador português de continuar a atrair investidores ao território nacional.